HISTÓRIA
CAZZOLATO - REGISTRANDO
PALMIRA
José Donizete Cazzolato
O enorme progresso
científico e tecnológico que vinha transformando a Europa desde o início do
século XIX não conseguiu, porém, diminuir as distâncias sociais. Enquanto alta
sociedade dos grandes centros vivia a "Belle Époque", a grande massa dos trabalhadores, urbanos e
rurais, beirava a miséria absoluta. Famílias inteiras vivendo em precários
padrões sócio-econômicos dependiam dos poucos empregos oferecidos pelas
indústrias, onde a regulamentação trabalhista mínima era ainda um sonho, ou
tiravam o magro sustento cultivando a terra, que pertencia a poucos e
riquíssimos senhores, em regime de quase servidão. Diante disso, a única chance
colocada ao alcance de tantos sem-terra e sem-teto europeus era emigrar - a
América e a Austrália abriam suas portas a novos colonos, e para cá vieram
grandes contingentes, em busca do futuro que a terra-mãe
na época lhes negava.
Nesse contexto,
vamos localizar nossas origens, a partir de dois casais de "contadini" que vivem na pequena Altivole,
província de Treviso, região do Vêneto,
norte da Itália. O primeiro, Ferdinando Antonello
/ Maria Luisa Pallaro, tinha já sete filhos na
passagem para este século: Angelina, Santina, Giuseppina,
Giuseppe, Nazareno, Angelo, Benvenuta
e Carolina. Dois anos depois, nasce Enrichetta, e, em
21 de agosto de
Chega o ano de 1914, e as dificuldades
enfrentadas pelos Antonello e pelos Cazzolato para criar os filhos tornam-se ainda maiores:
começa a guerra. Rino, Giuseppe, Angelo
e Nazareno, como tantos outros jovens de Altivole,
são mandados para a frente de combate contra a
Áustria. Quatro anos depois, terminada a que hoje chamamos "Primeira
Guerra Mundial", apenas Nazareno e Rino haviam
retornado. Adulto já, Rino sonha com dias melhores,
num lugar em que não tenha que compartilhar com mais trinta pessoas, entre
irmãos, primos e cunhados, a mesma casa.
Seu sonho começa a
concretizar-se em janeiro de 1924, quando uma carta chega do Brasil. Nela o tio Mies, vindo alguns anos antes, pede ao sobrinho que
prepare os outros documentos exigidos para a imigração, porque ele garante a
proposta de emprego. Este, aliás, era um documento fundamental, da mesma forma
que a condição de família constituída - solteiros ou aventureiros não eram
aceitos pelas autoridades brasileiras.
Palmira, a namorada, com quem Rino havia até tirado fotografia (sem o consentimento dos
pais, diga-se) faz também seu o projeto de vida nova. Assim, aguardaram apenas
a chegada do documento prometido pelo tio no Brasil, e, em 22 de maio, uma quinta-feira, acompanhados dos pais Michele e Ferdinando,
casam-se no civil: era necessário adiantar a certidão de casamento.
Nesse dia Palmira descobre que o então marido tinha
também o nome Marco.
O sol já ia alto às
seis da manhã da quinta-feira 5 de junho de 1924. Na "chiesa"
de Altivole casam-se, agora perante a Igreja, Marco Rino Cazzolato e Palmira Antonello. Ao fim da
rápida cerimônia, os noivos vão, de carroça, até Castelfranco,
onde, às oito, o trem os leva até Veneza. Para Palmira o dia é mais que especial: também era a primeira
vez que viajava de trem.
A viagem até Veneza,
porém, não tinha conotação de lua-de-mel. Era necessário que se apresentassem
no consulado brasileiro com a documentação para concluir o processo de
imigração. No entanto, aproveitaram a estada e
aceitaram o almoço oferecido pelo "padrone"
Giacomelli (o proprietário das terras que cultivavam)
na casa em que viviam seus filhos estudantes, cuja empregada era Benvenuta, uma das irmãs da noiva Palmira.
Retornando a Altivole, agora ambos para a casa dos Cazzolato, o jantar completa o dia festivamente - Maria
Celeste serve ao novo casal sopa de galinha. Alojam-se num quarto debaixo de
uma escada, que passa a ser mais um núcleo familiar sob o mesmo teto.
Pouco mais de um
mês, porém, o novo casal permaneceu ali alojado. No dia 14 de julho estavam
novamente na estação ferroviária de Castelfranco.
Desta vez, porém, com destino oposto, Gênova, de onde partiriam para a vida
nova. Acompanhava-os Natale (apelidado Giuseppe) Cazzolato, filho de Giocondo, primo de Michele Cazzolato, e de Angela, irmã de
Maria Celeste. Por ser solteiro, tinha que agregar-se a outra família, e esta
era sua oportunidade.
A bordo do "Nazario Sauro" os três
chegaram ao Brasil dia 4 de agosto, após dezenove dias de monotonia e enjôos.
De Santos, partiram, no dia seguinte, direto para Olímpia, no norte do Estado
de São Paulo.
O Brasil, nessa
época, era uma república
Para eles, no
entanto, tudo isso - greves, socialismo, eleições, tenentes, partidos, sindicatos
- era muito distante. Em sua vida simples de "contadini"
na terra natal pensavam apenas em uma oportunidade de sobrevivência, já que não
possuíam nem mesmo a terra que cultivavam. Chegando ao Brasil, e indo direto
para o interior, continuaram à margem dos acontecimentos nacionais e
internacionais. Preocupava-os o dia-a-dia: como enfrentar o novo país, com nova
língua, novos hábitos, novo clima? Sem nenhuma preparação anterior, enfrentaram
todos os desafios com as armas de que dispunham: coragem, perspicácia e muita
esperança.
Com esse espírito
chegam a Olímpia, então ponto final da ferrovia, onde pernoitam num hotel. Pela
manhã uma carroça dos Lunardelli os leva até a casa
do Tio Mies, que os hospeda por duas semanas. Também os orienta na compra dos
utensílios domésticos essenciais e na mobília da casa. Rino
consegue algumas tábuas e pontaletes e confecciona uma mesa, dois banquinhos,
uma pequena prateleira e dois cavaletes que suportavam a cama (tábuas) do
casal; com palha de milho improvisam um colchão,
encimado por um cobertor militar, trazido por Rino na
bagagem de mão. Melhor sorte não teve Giuseppe, que dormiu direto sobre a
palha. Um mês depois de instalados na casa "própria", chega o baú com
o pouco enxoval que tinham trazido no navio, basicamente roupa de cama.
No ano seguinte, no
mesmo 4 de agosto da chegada no Brasil, Palmira dá à
luz seu primeiro filho, batizado Miguel, que não sobrevive, porém, mais que uma
semana. Cerca de um mês depois, mudam-se para a vizinha fazenda Pau d'Alho, bem maior e de propriedade
de Geremia Lunardelli, o
emergente empresário que viria ser chamado, mais tarde, de "rei do
café".
Por mais três anos Rino, Palmira e Giuseppe vivem
Em outubro de 1928, Palmira, novamente grávida, enfrenta outra mudança, agora
para outro extremo do Estado, em busca do lote de terra que Rino
havia comprado na então chamada Alta Sorocabana. Chegando a Quatá,
instalam-se na fazenda José Gil, onde nasce Hermenegildo, em 13 de abril de 1929. Nesse mesmo ano
Giuseppe acompanha Palmiro Pilon
e Luigi Carminatti (que os incentivara a sair de
Olímpia) e abrem uma trilha no mato fechado, prolongando a estrada que, de João
Ramalho (povoado em torno de uma estação ferroviária), levava ao bairro da Água
Fria.
Finalmente nossos
heróis chegam ao seu pedaço de chão, em outubro de 1929. Agora em cinco
pessoas, instalam-se na casa toscamente erguida no lote de dez alqueires
adquirido
Em poucos anos,
muitos outros imigrantes, agora ex-colonos, ocupam todos os lotes, derrubando o
mato e formando cafezais. O bairro pertencia ao distrito de João Ramalho, do
município de Quatá, mas a distância da sede municipal
faz com que os novos moradores estabeleçam laços com a cidade de Rancharia,
mais próxima e mais acessível: a primitiva trilha já liga o bairro à estrada
que acompanha a ferrovia, num ponto próximo à estação de Moema. Também
reconstroem a primeira capela que um morador da parte mais antiga havia
dedicado ao santo da sua devoção, São Roque. Com a
igreja concluída em 1934, o bairro começa a receber visita mensal do padre
Paulo, pároco de Rancharia. Isso dá nova dimensão à vida social dos quase cem
moradores da Água Fria, a maioria de origem italiana: Carminatti,
Pilon, Cazzolato, Buso, Gonçalves, Dalossi, Marton, Gallina, Araújo, Tioso, Ferrari, Moreira, Domingos, Gazola,
Proggetti, Biasi, Silva, Magurno, Carraro, Foganholo, Zanini, Fregolenti, Fregadolli, Nabero, Maricatto...
Em 1935, Rino, Palmira e filhos mudam-se para a nova casa, construída em alvenaria para
abrigar a família cada vez maior: Eugênio nascera em 21 de fevereiro de 1931, e
Apolônia em 30 de novembro de 1932. O primo Natale,
que os acompanhava desde a partida de Altivole, agora
já conta com casa e família próprias, e a esposa
Teresa espera o nascimento do segundo filho, desta vez uma menina. Poucos dias
depois, também Palmira dá à luz; Romilda,
porém, vem a falecer aos dois anos.
Todavia, a vida
continuava, e outros filhos vêm trazer alegria ao casal: Maria Luísa, em 21 de
junho de 1938, e Firmino, em 15 de maio de 1940. Nesse ano, uma infecção leva Palmira ao hospital
Ao final da década
de 40, Palmira e Rino completam vinte anos de Água Fria, período em que viram os
filhos crescerem numa comunidade em que todos se sentiam felizes: haviam
conseguido uma vida melhor, apesar de todos os percalços. O país também
crescera, e, enquanto São Paulo inicia uma nova fase de industrialização, a
fronteira agrícola (com o café ainda à frente) avança pelo norte do Paraná e
pelo sul do então Mato Grosso. Dessa forma, os apelos migratórios vêm ao
encontro da necessidade de se solucionar o problema da divisão da pouca terra
(agora já se esgotando) de cada família aguafriense,
e, em cerca de dez anos, quase todos partem, repetindo o gesto dos pioneiros,
que, uma geração antes, haviam deixado a Itália. Em
junho de 1949 Palmira e Marco Rino
encomendam um bolo para comemorar as bodas de prata, e,
Santo
André, agosto de 1994.