HISTÓRIA CAZZOLATO - REGISTRANDO

 

 

PALMIRA

 

 

José Donizete Cazzolato

 

O enorme progresso científico e tecnológico que vinha transformando a Europa desde o início do século XIX não conseguiu, porém, diminuir as distâncias sociais. Enquanto alta sociedade dos grandes centros vivia a "Belle Époque", a grande massa dos trabalhadores, urbanos e rurais, beirava a miséria absoluta. Famílias inteiras vivendo em precários padrões sócio-econômicos dependiam dos poucos empregos oferecidos pelas indústrias, onde a regulamentação trabalhista mínima era ainda um sonho, ou tiravam o magro sustento cultivando a terra, que pertencia a poucos e riquíssimos senhores, em regime de quase servidão. Diante disso, a única chance colocada ao alcance de tantos sem-terra e sem-teto europeus era emigrar - a América e a Austrália abriam suas portas a novos colonos, e para cá vieram grandes contingentes, em busca do futuro que a terra-mãe na época lhes negava.

 

Nesse contexto, vamos localizar nossas origens, a partir de dois casais de "contadini" que vivem na pequena Altivole, província de Treviso, região do Vêneto, norte da Itália. O primeiro, Ferdinando Antonello / Maria Luisa Pallaro, tinha já sete filhos na passagem para este século: Angelina, Santina, Giuseppina, Giuseppe, Nazareno, Angelo, Benvenuta e Carolina. Dois anos depois, nasce Enrichetta, e, em 21 de agosto de 1904, a caçula Palmira (que nos deu este relato e hoje, 21 de agosto de 1994, perdeu definitivamente a condição de caçula...). O segundo casal, Michele Cazzolato / Maria Celeste Baldisser, entra no século XX apenas com o primeiro filho, Marco Rino, nascido em 22 de agosto de 1899. Mais oito irmãos completam a família nos anos seguintes: Maria, Virginia, Emma, Angelico, Romilda, Teresina, Guerrino e Pierina.

 

Chega o ano de 1914, e as dificuldades enfrentadas pelos Antonello e pelos Cazzolato para criar os filhos tornam-se ainda maiores: começa a guerra. Rino, Giuseppe, Angelo e Nazareno, como tantos outros jovens de Altivole, são mandados para a frente de combate contra a Áustria. Quatro anos depois, terminada a que hoje chamamos "Primeira Guerra Mundial", apenas Nazareno e Rino haviam retornado. Adulto já, Rino sonha com dias melhores, num lugar em que não tenha que compartilhar com mais trinta pessoas, entre irmãos, primos e cunhados, a mesma casa.

 

Seu sonho começa a concretizar-se em janeiro de 1924, quando uma carta chega do Brasil. Nela o tio Mies, vindo alguns anos antes, pede ao sobrinho que prepare os outros documentos exigidos para a imigração, porque ele garante a proposta de emprego. Este, aliás, era um documento fundamental, da mesma forma que a condição de família constituída - solteiros ou aventureiros não eram aceitos pelas autoridades brasileiras.

 

Palmira, a namorada, com quem Rino havia até tirado fotografia (sem o consentimento dos pais, diga-se) faz também seu o projeto de vida nova. Assim, aguardaram apenas a chegada do documento prometido pelo tio no Brasil, e, em 22 de maio, uma quinta-feira, acompanhados dos pais Michele e Ferdinando, casam-se no civil: era necessário adiantar a certidão de casamento. Nesse dia Palmira descobre que o então marido tinha também o nome Marco. 

 

O sol já ia alto às seis da manhã da quinta-feira 5 de junho de 1924. Na "chiesa" de Altivole casam-se, agora perante a Igreja, Marco Rino Cazzolato e Palmira Antonello. Ao fim da rápida cerimônia, os noivos vão, de carroça, até Castelfranco, onde, às oito, o trem os leva até Veneza. Para Palmira o dia é mais que especial: também era a primeira vez que viajava de trem.

 

A viagem até Veneza, porém, não tinha conotação de lua-de-mel. Era necessário que se apresentassem no consulado brasileiro com a documentação para concluir o processo de imigração. No entanto, aproveitaram a estada e aceitaram o almoço oferecido pelo "padrone" Giacomelli (o proprietário das terras que cultivavam) na casa em que viviam seus filhos estudantes, cuja empregada era Benvenuta, uma das irmãs da noiva Palmira. Retornando a Altivole, agora ambos para a casa dos Cazzolato, o jantar completa o dia festivamente - Maria Celeste serve ao novo casal sopa de galinha. Alojam-se num quarto debaixo de uma escada, que passa a ser mais um núcleo familiar sob o mesmo teto.

 

Pouco mais de um mês, porém, o novo casal permaneceu ali alojado. No dia 14 de julho estavam novamente na estação ferroviária de Castelfranco. Desta vez, porém, com destino oposto, Gênova, de onde partiriam para a vida nova. Acompanhava-os Natale (apelidado Giuseppe) Cazzolato, filho de Giocondo, primo de Michele Cazzolato, e de Angela, irmã de Maria Celeste. Por ser solteiro, tinha que agregar-se a outra família, e esta era sua oportunidade.

 

A bordo do "Nazario Sauro" os três chegaram ao Brasil dia 4 de agosto, após dezenove dias de monotonia e enjôos. De Santos, partiram, no dia seguinte, direto para Olímpia, no norte do Estado de São Paulo.

 

O Brasil, nessa época, era uma república em transformação. O velho governo da política "café-com-leite", que resistiria até 1930, ignorava os novos tempos e a nova classe que vinha se formando, a dos operários urbanos, composta por grande número de imigrantes italianos, vindos para cá desde 1880. Porém, não só as greves e as idéias socialistas agitavam a sociedade brasileira, mas também os movimentos militares depois chamados "tenentismo". Um desses movimentos, liderado por Isidoro Dias Lopes, eclodiu em São Paulo justamente em julho de 1924, e quase adiou a viagem de Rino, Palmira e Giuseppe.

 

Para eles, no entanto, tudo isso - greves, socialismo, eleições, tenentes, partidos, sindicatos - era muito distante. Em sua vida simples de "contadini" na terra natal pensavam apenas em uma oportunidade de sobrevivência, já que não possuíam nem mesmo a terra que cultivavam. Chegando ao Brasil, e indo direto para o interior, continuaram à margem dos acontecimentos nacionais e internacionais. Preocupava-os o dia-a-dia: como enfrentar o novo país, com nova língua, novos hábitos, novo clima? Sem nenhuma preparação anterior, enfrentaram todos os desafios com as armas de que dispunham: coragem, perspicácia e muita esperança.

 

Com esse espírito chegam a Olímpia, então ponto final da ferrovia, onde pernoitam num hotel. Pela manhã uma carroça dos Lunardelli os leva até a casa do Tio Mies, que os hospeda por duas semanas. Também os orienta na compra dos utensílios domésticos essenciais e na mobília da casa. Rino consegue algumas tábuas e pontaletes e confecciona uma mesa, dois banquinhos, uma pequena prateleira e dois cavaletes que suportavam a cama (tábuas) do casal; com palha de milho improvisam um colchão, encimado por um cobertor militar, trazido por Rino na bagagem de mão. Melhor sorte não teve Giuseppe, que dormiu direto sobre a palha. Um mês depois de instalados na casa "própria", chega o baú com o pouco enxoval que tinham trazido no navio, basicamente roupa de cama.

 

No ano seguinte, no mesmo 4 de agosto da chegada no Brasil, Palmira dá à luz seu primeiro filho, batizado Miguel, que não sobrevive, porém, mais que uma semana. Cerca de um mês depois, mudam-se para a vizinha fazenda Pau d'Alho, bem maior e de propriedade de Geremia Lunardelli, o emergente empresário que viria ser chamado, mais tarde, de "rei do café".

 

Por mais três anos Rino, Palmira e Giuseppe vivem em Olímpia. Nesse período a fazenda Pau d'Alho recebe colonos muito especiais para Palmira: sua irmã Enrichetta, com o marido e grávida de oito meses, chega no início de 1925; dois anos depois, seus pais, acompanhados da irmã Benvenuta e do irmão Nazareno, com a esposa e quatro filhos. Maria Luisa e Ferdinando encontram a filha já com um neto brasileiro - Avelino nascera em 7 de julho de 1926.

 

Em outubro de 1928, Palmira, novamente grávida, enfrenta outra mudança, agora para outro extremo do Estado, em busca do lote de terra que Rino havia comprado na então chamada Alta Sorocabana. Chegando a Quatá, instalam-se na fazenda José Gil, onde nasce Hermenegildo, em 13 de abril de 1929. Nesse mesmo ano Giuseppe acompanha Palmiro Pilon e Luigi Carminatti (que os incentivara a sair de Olímpia) e abrem uma trilha no mato fechado, prolongando a estrada que, de João Ramalho (povoado em torno de uma estação ferroviária), levava ao bairro da Água Fria.

 

Finalmente nossos heróis chegam ao seu pedaço de chão, em outubro de 1929. Agora em cinco pessoas, instalam-se na casa toscamente erguida no lote de dez alqueires adquirido em sociedade. Dessa mudança, Palmira recorda que tudo que possuíam coube numa carroça.

 

Em poucos anos, muitos outros imigrantes, agora ex-colonos, ocupam todos os lotes, derrubando o mato e formando cafezais. O bairro pertencia ao distrito de João Ramalho, do município de Quatá, mas a distância da sede municipal faz com que os novos moradores estabeleçam laços com a cidade de Rancharia, mais próxima e mais acessível: a primitiva trilha já liga o bairro à estrada que acompanha a ferrovia, num ponto próximo à estação de Moema. Também reconstroem a primeira capela que um morador da parte mais antiga havia dedicado ao santo da sua devoção, São Roque. Com a igreja concluída em 1934, o bairro começa a receber visita mensal do padre Paulo, pároco de Rancharia. Isso dá nova dimensão à vida social dos quase cem moradores da Água Fria, a maioria de origem italiana: Carminatti, Pilon, Cazzolato, Buso, Gonçalves, Dalossi, Marton, Gallina, Araújo, Tioso, Ferrari, Moreira, Domingos, Gazola, Proggetti, Biasi, Silva, Magurno, Carraro, Foganholo, Zanini, Fregolenti, Fregadolli, Nabero, Maricatto...

 

Em 1935, Rino, Palmira e filhos mudam-se para a nova casa, construída em alvenaria para abrigar a família cada vez maior: Eugênio nascera em 21 de fevereiro de 1931, e Apolônia em 30 de novembro de 1932. O primo Natale, que os acompanhava desde a partida de Altivole, agora já conta com casa e família próprias, e a esposa Teresa espera o nascimento do segundo filho, desta vez uma menina. Poucos dias depois, também Palmira dá à luz; Romilda, porém, vem a falecer aos dois anos.

 

Todavia, a vida continuava, e outros filhos vêm trazer alegria ao casal: Maria Luísa, em 21 de junho de 1938, e Firmino, em 15 de maio de 1940. Nesse ano, uma infecção leva Palmira ao hospital em Presidente Prudente, de onde retorna, um mês depois, com o dedo médio da mão direita amputado. Outro revés abala Palmira em 1942: perde seu nono filho, recém-nascido e também batizado Miguel, como fora o primeiro. Em 2 de fevereiro de 1943 nasce a última das filhas, batizada Angelina. O último dos filhos homens, no entanto, nascido em junho de 1945, e chamado Antônio, vive apenas um ano.

 

Ao final da década de 40, Palmira e Rino completam vinte anos de Água Fria, período em que viram os filhos crescerem numa comunidade em que todos se sentiam felizes: haviam conseguido uma vida melhor, apesar de todos os percalços. O país também crescera, e, enquanto São Paulo inicia uma nova fase de industrialização, a fronteira agrícola (com o café ainda à frente) avança pelo norte do Paraná e pelo sul do então Mato Grosso. Dessa forma, os apelos migratórios vêm ao encontro da necessidade de se solucionar o problema da divisão da pouca terra (agora já se esgotando) de cada família aguafriense, e, em cerca de dez anos, quase todos partem, repetindo o gesto dos pioneiros, que, uma geração antes, haviam deixado a Itália. Em junho de 1949 Palmira e Marco Rino encomendam um bolo para comemorar as bodas de prata, e, em outubro Avelino se casa, inaugurando uma nova fase da família, cuja história, a partir de então, muitos poderão contar.

 

Santo André, agosto de 1994.